terça-feira, 16 de novembro de 2010

O mundo codificado - Por uma filosofia do design e da comunicação, de Vilém Flusser

Fonte: Google Imagens
 Sobre a palavra design
A palavra design significa, entre outras coisas, conspiração, astucia, malicia. No entanto, como é que a palavra design adquiriu seu significado atual, no discurso da cultura, reconhecido internacionalmente? A palavra design ocorre nesse contexto de fraudes. Outros termos também bastante significativos aparecem nesse contexto, como “mecânica”, “máquina”, “técnica” e “arte”. A idéia fundamental é a de que um material amorfo que recebe do artista, o técnico, uma forma, ou melhor, em que o artista provoca o aparecimento da forma. A objeção fundamental de Platão contra a arte e a técnica reside no fato de que elas traem e desfiguram as formas (idéias) instituídas teoricamente quando as encarnam na matéria. Em alemão, um artista é alguém que conhece algo e é capaz de fazê-lo; um substantivo que deriva do verbo “poder”, mas também da palavra “artificial”. Estas estão fortemente inter-relacionadas; cada um é impensável sobre os demais, e todos eles derivam de uma perspectiva existencial diante do mundo. No entanto, essa conexão interna foi negada durante séculos. A cultura moderna, burguesa, fez uma separação brusca entre o mundo das artes e o mundo da técnica e das maquinas. A palavra design entrou nessa brecha como uma espécie de ponte entre esses dois mundos. E por isso design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (e, conseqüentemente, pensamentos, valorativo e cientifico) caminham juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma nova forma de cultura. Embora essa seja uma boa explicação, não é suficiente. Pois, afinal, o que une os termos mencionados é o fato de que todos apresentam conotações de engodo e malicia. A cultura para a qual o design poderá melhor preparar o caminho será aquela consciente de sua astucia. A pergunta é: a quem e ao que enganamos quando nos inscrevemos na cultura (na técnica e na arte, em suma, no design)? Esse é o design que está na base de toda cultura: enganar a natureza por meio da técnica. Tornamos-nos conscientes de que um ser humano é um design contra a natureza. Como explicar essa desvalorização de todos os valores? Quando se conseguiu superar a separação entre arte e técnica, abriu-se um horizonte dentro do qual podemos criar designs cada vez mais perfeitos, libertar-nos cada vez mais de nossa condição e viver de modo cada vez mais artificial (mais bonito). Mas o preço que pagamos por isso é a renuncia à verdade e à autenticidade. Tudo se converte em gadgets descartáveis. A palavra design adquiriu a posição central que tem hoje no discurso cotidiano porque estamos começando (e provavelmente com razão) a perder a fé na arte e na técnica como fontes de valores. Porque estamos começando a entrever o design que há por trás delas. Este ensaio segue um design determinado: ele quer trazer à luz aspectos pérfidos e ardilosos da palavra design, que normalmente costumam ser ocultados. Se ele tivesse seguido outro design, talvez pudesse surgir uma explicação distinta. Mas é exatamente assim: tudo depende do design.
Fonte: Google Imagens
O modo de ver do designer
“A alma tem dois olhos: um olha o tempo, o outro olha para longe, em direção à eternidade”. O olhar do primeiro olho conheceu, desde a invenção do telescópio e do microscópio, uma serie de melhorias técnicas. Quanto ao segundo olho, somente nos últimos anos é que se começou a dar os primeiros passos em direção a seu aperfeiçoamento técnico. A capacidade de olhar através do tempo em direção à eternidade, e de reproduzir o que foi visto desse modo, tornou-se relevante. Naquele tempo, essas pessoas eram conhecidas como profetas, mas hoje em dia seria preferível chamá-las de designers. Essa diferença de avaliação do “segundo olho da alma” é bastante significativa: acredita-se que ele não vê o futuro, mas a eternidade. Se seguirmos Platão (que chamava de “teoria” o modo de ver do segundo olho da alma) perceberemos, por meio dos fenômenos fugazes, formas eternas e imutáveis (“idéias”). Hoje vemos as coisas de um modo um tanto distinto. Já não pensamos que descobrimos ou descrevemos, mas que inventamos. Portanto, a geometria e a mecânica teórica são um design ao qual submetemos aos fenômenos para poder tê-los sob controle. Porém, se já não cremos, como Platão, que o designer dos fenômenos se encontra no céu e tem de ser descoberto teoricamente, mas acreditamos que somos nós mesmos que desenhamos os fenômenos, então porque será que eles têm precisamente o aspecto que têm, em vez de terem o aspecto que gostaríamos que tivessem? Por outro lado, não há dúvidas de que as formas são eternas, ou seja, não estão no espaço nem no tempo. O olhar do designer é, sem dúvida, aquele olhar do segundo olho da alma. Que aspecto tem realmente a eternidade? Qualquer que seja o seu aspecto, ela poderia sempre, graças à geometria analítica, ser enquadrada em equações. É o começo da tecnicização do segundo olho da alma. No entanto, por mais estranho que pareça, essas formas imutáveis são passíveis de mudança: podem deformar-se, girar, encolher e ampliar. E tudo o que surge desse processo é igualmente uma forma eterna e imutável. O segundo olho da alma continua olhando para a eternidade, mas agora consegue manipular essa eternidade. Esse é o olhar do designer: ele possui uma espécie de olho-sentinela, graças ao qual deduz e maneja eternidades.
Fonte: Google Imagens
Design: obstáculo para a remoção de obstáculos?
Um “objeto” é algo que está no meio, lançado no meio do caminho. Um obstáculo que serve para remover obstáculos? Essa contradição consiste na chamada “dialética interna da cultura” (cultura: totalidade dos objetos em uso). Essa dialética pode ser resumida assim: eu topo com obstáculos em meu caminho (topo com o mundo objetivo, objetal, problemático), venço alguns desses obstáculos (transformo-os em objetos de uso, em cultura), como objetivo de continuar seguindo, e esses objetos vencidos mostram-se eles mesmos como obstáculos. Quanto mais longe vou, mais sou impedido pelos objetos de uso. E na verdade sou duplamente obstruído por eles: primeiro, porque necessito deles para prosseguir, e, segundo, porque estão sempre no meio do meu caminho. Em outras palavras: quanto mias prossigo, mais a cultura se torna objetiva, objetal e problemática. Com relação aos objetos de uso, cabe perguntar aqui de onde e para que foram lançados em nosso caminho. Foram projetados, desenhados no caminho por pessoas que nos precederam. São projetos, designs de que necessito para progredir e que, ao mesmo tempo, obstruem meu progresso. Para sair desse dilema, eu mesmo desenvolvo os projetos: eu os lanço objetos de uso no caminho de outras pessoas. Essa é uma questão política e também estética, e constitui o núcleo do tema configuração. Objetos de uso são mediações entre mim e outros homens. São objetivos, intersubjetivos, dialógicos, comunicativos, problemáticos e objetais. O processo de criação e configuração dos objetos envolve a questão da responsabilidade (e, em conseqüência, da liberdade). A responsabilidade é a decisão de responder por outros homens. Quando decido responder pelo projeto que crio, enfatizo o aspecto intersubjetivo e, se dedicar mais atenção ao objeto em si, mais irresponsavelmente o crio, mais ele estorvará meus sucessores e encolherá o espaço da liberdade na cultura. O progresso cientifico e técnico é tão atrativo que qualquer ato criativo ou design concebido com responsabilidade é visto praticamente como retrocesso. O design responsável é entendido como algo retrogrado Antigamente, “pagãos” eram aqueles que se deixavam capturar pelo mundo objetivo e “ídolos” os objetos de uso que podiam atrair, prender a atenção das pessoas. A cultura se encontra caracteriza-se pelo culto aos ídolos. Começamos de fato a separar o conceito objeto do conceito matéria, e a projetar objetos de uso imateriais. O surgimento de uma “cultura imaterial” poderia ser menos obstrutivo, mas, pelo contrário, pode ser que ela restrinja ainda mais a liberdade do que a cultura material. A própria coisa imaterial o leva a criar de um modo responsável. Sua face mediática, intersubjetiva, dialógica, é visível. Os objetos de usos são obstáculos de que necessito para poder progredir e, quanto mais preciso deles, mais os consumo. Toda matéria tende a perder sua forma (sua informação) e os objetos de uso imateriais também vão para o lixo. Estamos começando a nos tornar cada vez mais conscientes do caráter efêmero de todas as formas (e, conseqüentemente, de toda criação). Pois os dejetos começam a obstruir nosso caminho tanto quanto os utilitários.
Fonte: Google Imagens
Uma ética do design industrial?
A moralidade das coisas? O designer tinha como meta principal a produção de objetos úteis, realizada com exatidão, isto é, tinha que estar de acordo com os conhecimentos científicos, além de ter um aspecto bonito, apto a se converter em uma experiência para o usuário. O ideal do construtor era pragmático, funcional. As normas morais foram fixadas pelo publico. A questão da moralidade das coisas, da responsabilidade moral e política do designer adquiriram um novo significado no contexto atual. Existem pelo menos três razões para isso. Primeiro, não há mais nenhum âmbito publico que estabeleça normas. Segundo, a produção industrial, inclusive o design, desenvolveu-se até se converter em uma complexa rede que serve de informações de diversas áreas. Terceiro, no passado havia a aceitação tácita de que a responsabilidade moral por um produto era simplesmente do usuário. Em outras palavras: o eventual desinteresse dos designers por essas questões poderá levar a total ausência de responsabilidade. O nazismo e a Guerra do Golfo mostram claramente que: a) não existe mais norma alguma que se possa aplicar sobre a produção industrial; b) não há um causador único de um delito; c) a responsabilidade está diluída a tal ponto que nos encontramos efetivamente numa situação de absoluta irresponsabilidade com relação àquelas ações que procedem da produção industrial. Quem é, afinal, responsável por esse complexo pós-industrial? E quem é responsável pela conduta que surge de uma rede de relações? Se não formos capazes – além de toda ideologia – de encontrar minimamente um caminho de aproximação a uma solução dos problemas étnicos do design, então fenômenos parecidos haverão de representar unicamente os primeiros estágios da destruição e da autodestruição. O fato de que começamos a fazer perguntas é motivo de esperança.
Fonte: Google Imagens
Design como teologia
No séc. XIX pensava assim: Ocidente é Ocidente e Oriente é Oriente; e os dois jamais podem encontrar-se. Tratava-se de uma opinião baseada num conhecimento profundo: no Ocidente, as pessoas não querem morrer, no entanto têm de fazê-lo; no Oriente, as pessoas não querem viver (pois a vida é considerada um sofrimento), no entanto é necessário reencarnar. Mas quando sustentamos na mão um equipamento eletrônico japonês (como um rádio portátil), compreendemos que o abismo começa a se fechar. Não há nada mais fácil do que banalizar esse acontecimento até agora inédito. O rádio portátil é um produto da ciência aplicada ocidental e seu design é japonês. O design não segue a função, mas os mercadores a bordo de seus barcos ou ao longo das rotas da seda. O rádio portátil japonês certamente não impõe à ciência aplicada do Ocidente uma forma oriental, mas trata-se de uma síntese em que ambos se complementam mutuamente. Se pensarmos bem, essa é uma afirmação estarrecedora. A ciência ocidental existe graças a essa distância, que se torna possível por meio da teoria e se abre quando nos posicionamos de forma critica ou cética com relação ao mundo dos fenômenos. A forma das coisas orientais tem seu fundamento em uma vivencia concreta muito especifica, graças à qual o homem e o mundo se fundem um com o outro. Entre as teorias cientificas e a experiência concreta de uma unidade inseparável abre-se o abismo de que falávamos. Pode ser que vejamos mais de perto esse problema (decisivo para o futuro) se tentarmos confrontar o conceito ocidental de design com noções orientais. Do nosso ponto de vista, o design é freqüentemente visto como a imposição de uma forma sobre uma massa informe. Naturalmente há que se aceitar que nenhum desenho pode ser “perfeito”, coincidir completamente com o modelo teórico segundo o qual foi criado. Esse é um problema nosso com o design. No Extremo Oriente podemos observar como surgem formas entre as mãos dos orientais como ideogramas. Não se trata de uma idéia imposta sobre algo amorfo; trata-se de fazer surgir de si mesmo e do mundo circundante uma forma que abarque ambos. O design seria, pois, uma espécie de imersão no não-eu, graças à qual o eu sobretudo se configura. Enquanto no Ocidente o design revela um homem que interfere no mundo, no Oriente ele é muito mais o modo como os homens emergem do mundo para experimentá-lo. Se considerarmos a palavra estético em seu significado originário (isto é, no sentido de “experimentável”, de “vivenciável”), podemos afirmar que o design no Oriente é puramente estético. Em todo design desse tipo se expressa a peculiar qualidade estética da fusão com o ambiente, da dissolução do eu. Um olhar treinado em fenomenologia deveria detectar esse fenômeno tanto no rádio portátil, em um Toyota e na câmera fotográfica, como na comida japonesa. Essa afirmação é estarrecedora pela seguinte razão: a ciência natural e a técnica nela baseada só poderiam ter surgido em solo ocidental. Pressupõem a distância teórica, mas também a convicção judaica de que é necessário mudar a si mesmo. No fundo, a ciência é um método para descobrir o Deus judaico-cristão sobre a Terra. Se transplantássemos a ciência e a técnica para um design do Extremo Oriente, ambas deveriam alterar sua essência. Nossa ciência é um discurso lógico, e esse discurso está codificado alfanumericamente. Em outras palavras: a ciência descreve e calcula a natureza segundo as regras da escrita e do pensamento lineares. A motivação da ciência é estar de posse pela natureza descrita e calculada, no sentido de elevar o saber ao poder. No Extremo Oriente não existe nenhum código estruturalmente comparável ao alfanumérico. A ciência e a tecnologia lá são exclusivamente inglesas e pensáveis em nosso sistema de números. No entanto, o código alfanumérico está começando agora a ser abandonado em beneficio dos códigos orientais (ideogramas) do que com os lineares, de modo que agora ciência e tecnologia no Extremo Oriente se tornam tão compreensíveis como no Ocidente. Há agora outra motivação por trás delas. Visto a partir do Ocidente, o que está ocorrendo pode ser interpretado como uma desintegração das estruturas básicas da cultura ocidental. De uma perspectiva “mais elevada”, talvez se possa falar atualmente de uma influencia ocidental no Extremo Oriente e vice-versa. Talvez o que se faça evidente no design dos produtos pós-industriais (“pós-modernos”?) seja essa mútua subversão. Se, como parece ser o caso, o transplante da ciência e da tecnologia ocidentais para o Extremo Oriente conduz a uma diluição das duas culturas, então cabe falar efetivamente de uma “cultura de massas”. Mas também podemos tentar compreender o atual processo de encontro entre Ocidente e Oriente de outro modo. O que aconteceria se no design dos produtos pós-industriais se pudesse se manifestar um novo sentimento existencial? Essas duas atitudes excludentes entre si podem (ou devem) fundir-se uma na outra. Seria necessário submeter esse design a uma análise “teológica” para poder saber se a atitude diante da vida e da morte está se situando em um novo plano? Será que esse design não é expressão de um cristianismo judaico “elevado”, de um budismo “elevado”? Essa é uma hipótese ousada, aventurosa. Aproximar-se desse assunto é precisamente o objetivo do presente artigo, que no entanto deve confessar que considera o proposto aqui como provisório. Ele deve ser lido como ensaio, isto é, como a tentativa de formular uma hipótese.

Nenhum comentário:

Postar um comentário