sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Morte e vida de grandes cidades, de Jane Jacobs

O uso das calçadas: Contato
Fonte: Google Imagens
O ponto fundamental da vida social nas calçadas é precisamente o fato de serem públicos. Reúnem pessoas que não se conhecem socialmente de maneira intima, privada, e muitas vezes nem se interessam em se conhecer dessa maneira. As cidades estão cheias de pessoas com quem certo grau de contato é proveitoso e agradável, do seu, do meu ou do ponto de vista de qualquer individuo. Mas você não vai querer que elas fiquem no seu pé. Ao falar a respeito da segurança nas calçadas, existe a necessidade de haver, no cérebro por trás dos olhos atentos á rua, um pressuposto inconsciente do apoio geral da rua quando a situação é adversa - quando uma cidadão tem de escolher, por exemplo, se quer assumir a responsabilidade, ou abrir mão dela, de enfrentar a violência ou defender desconhecidos. Existe uma palavrinha para esse pressuposto de apoio: confiança. A confiança na rua forma-se com o tempo a partir de inúmeros pequenos contatos públicos nas calçadas. Grande parte desses contatos é absolutamente trivial, mas a soma de tudo não é. A soma desses contatos públicos casuais no âmbito local - a maioria dos quais é fortuita, diz respeito a solicitações, a totalidade dos quais é dosada pela pessoa envolvida e não imposta a ela por ninguém – resulta na compreensão da identidade pública das pessoa, uma rede de respeito e confiança mútuos e um apoio eventual na dificuldade pessoal ou da vizinhança. A inexistência dessa confiança é um desastre para a rua. Seu cultivo não pode ser institucionalizado. E, acima de tudo, ela implica não comprometimento pessoal. Ruas impessoais geram pessoas anônimas, fato diretamente relacionado à vida pública e informal das calçadas como convocações de encontros, disponibilidade de locais de encontro e existência de questões de interesse público óbvio. A privacidade na zona urbana é preciosa. É indispensável, mas na maioria dos lugares não se consegue obtê-la. Em comunidades pequenas, todo mundo sabe da vida de todo mundo. Na cidade grande, nem todos sabem, a não ser aqueles que você escolhe para revelar segredos. Essa é uma característica das cidades grandes mais intensamente apreciadas e zelosamente preservadas. A privacidade por meio de janelas é a coisa mais fácil de conseguir no mundo. No entanto, a privacidade de revelar assuntos particulares a pessoas escolhidas e a privacidade de ter razoável controle sobre quem pode usar do seu tempo e quando fazê-lo são coisas raras na maior parte do mundo e não têm relação alguma com a disposição das janelas. Uma boa vizinhança urbana consegue um equilíbrio e tanto entre a determinação das pessoas de ter um mínimo de privacidade e seu desejo concomitante de poder variar os graus de contato, prazer e auxilio mantidos com as pessoas que as rodeiam. Esse equilíbrio é em grande parte constituído de pequenos detalhes manejados com sensibilidade e aceitos e praticados de maneira tão informal que normalmente nem são percebidos. Trata-se desse limite bem traçado, imposto quase inconscientemente, entre o mundo público e o privado. Esse limite pode ser mantido, sem que ninguém estranhe, pela grande variedade de oportunidades para contato público nos negócios instalados ao longo das calçadas ou nas próprias calçadas. Com um relacionamento assim, é possível conhecer na vizinhança todo tipo de pessoa sem estabelecer laços indesejados ou obrigações dessa espécie que vem junto com os relacionamentos menos restritos. Com o passar do tempo, é possível até a convivência familiar entre elas. Compartilhar é um tempo legitimamente aversivo para um velho ideal da teoria do planejamento urbano. Esse ideal é o de que, se há algo a dividir entre as pessoas, deve-se dividir ainda mais. O compartilhar, aparentemente um recurso espiritual dos novos subúrbios, tem um efeito destrutivo para as cidades. A existência de partilhar mais afasta os moradores da cidade. Quando uma área da cidade carece de vida nas calçadas, os moradores desse lugar precisam ampliar sua vida privada se quiserem manter com seus vizinhos um contato equivalente. Devem decidir-se por alguma forma de compartilhar, pela qual se divida mais do que na vida nas calçadas, ou então decidir-se pela falta de contato. Quanto ao primeiro resultado, em que se partilha mais, as pessoas tornam-se excessivamente exigentes em relação a quem são seus vizinhos ou com quem elas se relacionam, primando por semelhanças básicas de padrão de vida, valores e formação. Aí não existe vida pública em nenhuma das acepções urbanas. Há graus variados de uma vida privada ampliada. O resultado mais comum nas cidades, onde as pessoas de vêem diante da opção de compartilhar muito ou nada, é o nada. Em lugares da cidade que careçam de uma vida pública natural e informal, é comum os moradores manterem em relação aos outros um isolamento extraordinário. O resultado disso é que se deixam de realizar as obrigações públicas comuns, nas quais as pessoas precisam ter um pouco de iniciativa pessoal, ou aquelas em que é preciso associar-se a um propósito comum. O fosso que essa situação abre atinge proporções incríveis. Para essas famílias, o significado de privacidade já foi bastante deturpado para algo como uma forma de autoproteção: um mecanismo grupal complexo de proteção e preservação da dignidade pessoal diante de tantas pressões externas de adaptação. No entanto, pode-se encontrar, ao lado do isolamento, um nível considerável de partilha nesses lugares. Ainda assim, o partilhar é o que dificulta esse tipo de associação. A tendência é limitar-se a grupos reduzidos, como se fosse um processo natural. Não existe uma vida pública normal. A análise da estrutura social de um distrito apagado e desvitalizado chegou à conclusão de que não havia estrutura social alguma. A estrutura social da vida nas calçadas depende em parte do que pode ser chamado de uma figura pública autonomeada. A figura pública é aquela que tem contato freqüente com um amplo circulo de pessoas e interesse em tornar-se uma figura pública. Sua principal qualificação é ser pública, conversar com várias pessoas diferentes. É assim que se transmitem as noticias que são de interesse das ruas. A maioria das personagens de rua são pessoas que cuidam de lojas ou bares. São figuras públicas fundamentais: todas as outras figuras públicas das ruas dependem delas. As figuras públicas não só espalham noticias e sabem as noticias como se relacionam e espalham as novidades, de fato. A vida na rua não nasce de um dom ou um talento desconhecido. Só surge quando existem as oportunidades concretas de que necessita. Coincidentemente, são as mesmas oportunidades, com a mesma abundancia e constância, necessárias para cultivar a segurança nas calçadas. Se elas não existirem, os contatos públicos nas ruas também não existirão. Os ricos têm muito mais maneiras de satisfazer necessidades do que os mais pobres, que dependem mais da vida nas ruas. Mesmo assim, muitos dos ricos ou quase ricos das cidades parecem apreciar a vida nas ruas tanto quanto qualquer outra pessoa. Eles fazem de tudo, até pagar alugueis fabulosos, para mudar-se para locais com uma vida de rua exuberante e variada. A eficiência das figuras públicas diminui drasticamente se a pressão sob elas for muito grande. Um desinteresse profundo é o clima que predomina nos lugares em que um centro comercial planejado ou um zoneamento repressivo inventam artificialmente monopólios comerciais nos bairros, embora tenha o sucesso financeiro previsto, socialmente ele não atende à cidade. O contato público e a segurança nas ruas, juntos têm relação direta com o mais grave problema social do nosso país: segregação e discriminação racial. Urbanizar ou reurbanizar metrópoles cujas ruas sejam inseguras e cuja população deva optar entre partilhar muito ou não partilhar nada pode tornar muito mais difícil para as cidades superar a discriminação, sejam quais forem as iniciativas empreendidas. Aparentemente despretensiosos, despropositados e aleatórios, os contatos nas ruas constituem a pequena mudança a partir da qual pode florescer a vida pública exuberante da cidade. 

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