quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Morte e vida de grandes cidades, de Jane Jacobs

Os usos das calçadas: Segurança
Fonte: Google Imagens


As ruas das cidades servem a vários fins além de comportar veículos; e as calçadas - a parte das ruas que cabe aos pedestres - servem a muitos fins além de abrigar os pedestres. Esses usos estão relacionados à circulação. A calçada por si só significa alguma coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas próximas. As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade, são seus órgãos mais vitais. Quando as pessoas dizem que uma cidade, ou parte dela, é perigosa ou selvagem, querem dizer basicamente é que não se sentem seguras nas calçadas. Contudo, as calçadas e aqueles que as usam não são beneficiários passivos da segurança ou vitimas indefesas do perigo. Manter a segurança urbana é uma função fundamental das ruas das cidades e suas calçadas. Essa função é completamente diferente de qualquer atribuição que se exija das calçadas e das ruas de cidades pequenas ou de subúrbios verdadeiros. As metrópoles são maiores e mais povoadas que as cidades pequenas e são cheias de desconhecidos. O principal atributo de um distrito urbano próspero é que as pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos. Não é preciso haver muitos casos de violência numa rua ou num distrito para que as pessoas temam as ruas. E, quando temem as ruas, as pessoas as usam menos, o que as torna inda mais inseguras. A violência e a insegurança real não podem ser rotuladas como um problema característico dos cortiços ou das áreas mais antigas das cidades ou ainda de grupos minoritários, pobres, marginalizados... Há males sociais profundos e complexos por trás da delinqüência e da criminalidade, tanto nos subúrbios e nas cidades de pequeno porte quanto nas metrópoles. Se pretendermos preservar uma sociedade urbana capaz de diagnosticar problemas sociais profundos e mantê-los sob controle, o ponto de partida deve ser, em qualquer circunstância, encorajar as forças viáveis para a preservação da segurança e da civilização - nas cidades que temos. A primeira coisa que deve ficar clara é que a ordem pública – a paz nas calçadas e nas ruas – não é mantida basicamente pela policia, sem com isso negar sua necessidade. É mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em meio ao próprio povo e por ele aplicados. A segunda coisa que se deve entender é que o problema da insegurança não pode ser solucionado por meio da dispersão das pessoas, trocando as características das cidades pelas características dos subúrbios. Estamos então diante de uma questão sumamente importante a respeito de qualquer rua: que oportunidades ela oferece para o crime? Seja como for, ruas de tipos diferentes encerram modalidades diferentes de violência e medo da violência. Certas vias públicas não dão oportunidade alguma à violência urbana. Outras são locais especialmente vulneráveis. Seus problemas provem do fato de ela não ter condições físicas de funcionar com a segurança e a conseqüente vitalidade de m distrito urbano. Existem diferenças drásticas na segurança da população até mesmo em áreas supostamente parecidas de lugares supostamente parecidos. E uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue garantir a segurança; uma rua deserta, não. Uma rua com infra-estrutura para receber desconhecidos e ter a segurança como um trunfo devido à presença deles – como as ruas dos bairros prósperos- precisa ter três características principais: Primeira, deve ser nítida a separação entre o espaço publico e o espaço privado. O espaço público e o privado não podem misturar-se, como normalmente ocorre em subúrbios ou em conjuntos habitacionais. Segunda, devem existir olhos para a rua, os olhos daqueles que podemos chamar de proprietários naturais das ruas. Os edifícios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a segurança, tanto deles quanto dos moradores, devem estar voltados para a rua. Eles não podem estar com os fundos ou um lado morto para a rua e deixá-la cega. E terceira, a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, tanto para aumentar na rua o numero de olhos atentos quanto para induzir um numero suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas. Ninguém gosta de ficar na soleira de uma casa ou na janela olhando  uma rua vazia. Quase ninguém faz isso. Há muita gente que gosta de entreter-se, de quando em quando, olhando o movimento da rua. Em assentamentos urbanos de pequeno porte, o controle sobre o comportamento aceitável em  mais público, quando não sobre a criminalidade, parece funcionar com mais ou menos êxito por meio de um emaranhado de condutas, comentários, aprovação, desaprovação e sanções – todos aspectos importantes quando as pessoas se conhecem e as noticias correm de boca em boca. É inútil tentar esquivar-se da questão da insegurança urbana tentando tornar mais seguros outros elementos da localidade, como pátios internos ou áreas de recreação cercadas. As ruas devem não apenas resguardar a cidade de estranhos que depredam: devem também proteger os inúmeros desconhecidos pacíficos e bem intencionados que as utilizam, garantindo também a segurança deles. Além do mais, nenhuma pessoa normal pode passar a vida numa redoma, e aí se incluem as crianças. Todos precisam usar as ruas. Todavia, não é tão simples atingir essas metas, especialmente a última.  Não se podem forçar as pessoas a utilizar as ruas sem motivo. Entretanto, a segurança das ruas é mais eficaz, mais informal e envolve menos traços  de hostilidade e desconfiança exatamente quando as pessoas as utilizam e usufruem espontaneamente. O requisito básico da vigilância é um número substancial de estabelecimentos e outros locais públicos dispostos ao longo das calçadas do distrito; deve haver entre eles sobretudo estabelecimentos e espaços públicos que sejam utilizados de noite. Em primeiro lugar, dão ás pessoas – tanto moradores quanto estranhos – motivos concretos para utilizar as calçadas onde esses estabelecimentos existem. Em segundo lugar, fazem com que as pessoas percorram as calçadas, passando por locais que, em si, não têm interesse para uso público, mas se tornam freqüentados e cheios de gente por serem caminho para outro lugar. Em terceiro lugar, os próprios lojistas e outros pequenos comerciantes costumam incentivar a tranqüilidade e a ordem. Se estiverem em bom número, são ótimos vigilantes das ruas e guardiões das calçadas. Este último item, de que a presença de pessoas atrai outras pessoas, é uma coisa que os planejadores e projetistas tem dificuldade em compreender. Eles partem do principio de que os habitantes das cidades preferem contemplar o vazio, a ordem e o sossego palpáveis. O equivoco não poderia ser maior. O prazer das pessoas de ver o movimento e outras pessoas é evidente em todas as cidades. A mesma coisa acontece nas vias públicas de qualquer lugar. Uma rua viva sempre tem tanto usuários quanto meros espectadores, além de pessoas que tomam conta das ruas sem compromisso. Elas notam os desconhecidos. Elas observam tudo o que acontece. Se precisarem intervir, seja para orientar um estranho esperando no lugar errado, seja para chamar a policia, elas intervêm.  Sem dúvida, a intervenção sempre requer certa autoconfiança, por parte de quem age, sobre sua convicção como co-proprietário da rua e sobre o auxilio que terá em caso de necessidade. No entanto, ainda mais fundamental do que a intervenção e imprescindível a ela é a própria vigilância. Nem todo o mundo nas cidades ajuda a tomar conta das ruas, e muitos moradores ou trabalhadores não têm consciência do motivo pelo qual seu bairro é seguro. Em alguns bairros ricos, onde existe pouca vigilância do tipo faça-você-mesmo são contratados vigilantes de rua, que prestam quase o mesmo serviço na manutenção da civilidade nas ruas. As cidades não apenas têm espaço para essas diferenças e outras mais em relação a gostos, propósitos e ocupações; também precisam de pessoas com todas essas diferenças de gostos e propensões. A boa iluminação é importante, mas não se pode atribuir apenas à escuridão a enfermidade grave e funcional das áreas apagadas, a Grande Praga da Monotonia. Para explicar o efeito perturbador dos estranhos nas ruas de áreas urbanas apagadas, destacarei primeiro as peculiaridades de outra espécie típica de rua – os corredores dos conjuntos habitacionais em prédios de apartamentos, aqueles derivados da Ville Radieuse. Em certo sentido, os elevadores e os corredores desses conjuntos são ruas no chão, e do chão se façam parques desérticos. Essas áreas internas dos edifícios não só são ruas no sentido de que servem à circulação dos moradores. São ruas também no sentido de serem acessíveis ao público. Qualquer um pode entrar nesses edifícios sem se identificar e usar a rua móvel, que é o elevador, e as calçadas, que são os corredores. Essas ruas internas, embora inteiramente acessíveis ao uso público, são fechadas à vista das pessoas, carecendo, portanto, da vigilância e da inibição exercidas pelos olhos que policiam as ruas. Essas mesmas ruas que atraem estranhos não estão preparadas para lidar com estranhos, e a presença deles é uma ameaça automática. Um planejamento que ignore isso e desconsidere as profundas deficiências funcionais do local só pode provocar uma de duas conseqüências. Primeira, as pessoas de fora continuarão a freqüentar o local quando quiserem e, sendo assim, haverá entre elas estranhos que não são nem um pouco bem-comportados. Quanto à segurança, nada terá mudado, a não ser que talvez haja mais oportunidades para cometer delitos nas ruas, em virtude da ampliação dos vazios. Ou, segunda conseqüência, o plano pode conter medidas rígidas e insólitas para manter as pessoas de fora afastadas do local, como soltar cães policiais todas as noites para patrulhar e intimidar qualquer ser humano. O diagnostico e as medidas corretivas do plano são típicas – apenas ligeiramente mais ambiciosas – de planos concebidos como experimentos de revitalização de áreas apagadas em cidades de todo o país. Suponhamos que continuemos a construir cidades inseguras e a reurbanizá-las deliberadamente. Como conviveremos com essa insegurança? Pelas evidencias que temos até hoje, parece haver três maneiras de conviver com ela. A primeira maneira é deixar o perigo reinar absoluto e deixar que os infelizes que defrontarem com ele sofram as conseqüências. Essa é a política adotada atualmente com relação aos conjuntos habitacionais de baixa renda e vários outros, de renda média. A segunda maneira é refugiar-se em veículos. Esse recurso é utilizado nas grandes reservas de animais selvagens da África, nas quais os turistas são advertidos a não sair do carro em hipótese alguma até que cheguem ao alojamento. Essa prática também é empregada em Los Angeles. A terceira maneira foi criada por bandos de arruaceiros e abertamente adotada pelos criadores da cidade reurbanizada. Essa modalidade consiste em cultivar a instituição do Território. Segundo a modalidade tradicional do sistema do Território, uma gangue apropria-se de certas ruas e conjuntos habitacionais ou parques – geralmente uma combinação dos três. Os integrantes de outras gangues não podem entrar nesse Território sem a permissão de seus proprietários e se o fizerem correm o risco de ser espancados ou enxotados, embora ocorram tréguas entre os grupos rivais. Para a polícia, que procura garantir o direito de qualquer pessoa de transitar em segurança em qualquer local da cidade, tendo por direito fundamental a imunidade, os pactos sobre os territórios subvertem intoleravelmente os direitos do cidadão e a segurança pública. Nos projetos de reurbanização das cidades também é prática a demarcação de territórios: as cercas se tornam concretas. Na cidade reurbanizada é necessário haver uma serie de cercas para instalar uma vizinhança equilibrada. A “junção” de duas populações com etiquetas de preço diferentes é particularmente notável e o preconceito e a discriminação são visíveis. A prática de dividir a cidade em Territórios não é uma solução nova-iorquina apenas. É uma solução da cidade norte-americana reurbanizada. Onde quer que surja uma cidade reurbanizada, o conceito do Território vem junto, porque a cidade reurbanizada despreza a função fundamental da rua e, com ela, necessariamente, a liberdade da cidade. Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da segurança e a liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos. Essa ordem compõe-se de movimento e mudança, e embora, se trate de vida, não de arte, podemos chamá-la, na fantasia, de forma artística da cidade e compará-la a dança. Um balé complexo, em que cada individuo e os grupos têm todos papeis distintos, que por milagre, se reforçam mutuamente e compõem um todo ordenado. O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer lugar está sempre repleto de novas improvisações. A descrição dos balés diários são mais frenéticas do que são, porque as cenas são mais compactadas. Na vida real não é assim. Na vida real, com certeza, há sempre alguma coisa acontecendo, o balé não tem intervalo, mas a sensação geral é serena, e a cadencia geral, bem mais pausada. Não existe porém simplicidade alguma na ordem em si ou no atordoante número de elementos que a compõem. A maior parte desses componentes são, de certa maneira, específicos. Eles provocam um efeito conjugado sobre a calçada, contudo, que não é de modo algum especifico. Aí reside sua força.

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