Os usos das calçadas: Segurança
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Fonte: Google Imagens |
As ruas das cidades servem a
vários fins além de comportar veículos; e as calçadas - a parte das ruas que
cabe aos pedestres - servem a muitos fins além de abrigar os pedestres. Esses
usos estão relacionados à circulação. A calçada por si só significa alguma
coisa junto com os edifícios e os outros usos limítrofes a ela ou a calçadas
próximas. As ruas e suas calçadas, principais locais públicos de uma cidade,
são seus órgãos mais vitais. Quando as pessoas dizem que uma cidade, ou parte
dela, é perigosa ou selvagem, querem dizer basicamente é que não se sentem
seguras nas calçadas. Contudo, as calçadas e aqueles que as usam não são
beneficiários passivos da segurança ou vitimas indefesas do perigo. Manter a
segurança urbana é uma função fundamental das ruas das cidades e suas calçadas.
Essa função é completamente diferente de qualquer atribuição que se exija das
calçadas e das ruas de cidades pequenas ou de subúrbios verdadeiros. As
metrópoles são maiores e mais povoadas que as cidades pequenas e são cheias de
desconhecidos. O principal atributo de um distrito urbano próspero é que as
pessoas se sintam seguras e protegidas na rua em meio a tantos desconhecidos.
Não é preciso haver muitos casos de violência numa rua ou num distrito para que
as pessoas temam as ruas. E, quando temem as ruas, as pessoas as usam menos, o
que as torna inda mais inseguras. A violência e a insegurança real não podem
ser rotuladas como um problema característico dos cortiços ou das áreas mais
antigas das cidades ou ainda de grupos minoritários, pobres, marginalizados...
Há males sociais profundos e complexos por trás da delinqüência e da
criminalidade, tanto nos subúrbios e nas cidades de pequeno porte quanto nas
metrópoles. Se pretendermos preservar uma sociedade urbana capaz de
diagnosticar problemas sociais profundos e mantê-los sob controle, o ponto de
partida deve ser, em qualquer circunstância, encorajar as forças viáveis para a
preservação da segurança e da civilização - nas cidades que temos. A primeira
coisa que deve ficar clara é que a ordem pública – a paz nas calçadas e nas
ruas – não é mantida basicamente pela policia, sem com isso negar sua
necessidade. É mantida fundamentalmente pela rede intrincada, quase
inconsciente, de controles e padrões de comportamento espontâneos presentes em
meio ao próprio povo e por ele aplicados. A segunda coisa que se deve entender
é que o problema da insegurança não pode ser solucionado por meio da dispersão
das pessoas, trocando as características das cidades pelas características dos
subúrbios. Estamos então diante de uma questão sumamente importante a respeito
de qualquer rua: que oportunidades ela oferece para o crime? Seja como for,
ruas de tipos diferentes encerram modalidades diferentes de violência e medo da
violência. Certas vias públicas não dão oportunidade alguma à violência urbana.
Outras são locais especialmente vulneráveis. Seus problemas provem do fato de
ela não ter condições físicas de funcionar com a segurança e a conseqüente
vitalidade de m distrito urbano. Existem diferenças drásticas na segurança da
população até mesmo em áreas supostamente parecidas de lugares supostamente
parecidos. E uma coisa que todos já sabem: uma rua movimentada consegue
garantir a segurança; uma rua deserta, não. Uma rua com infra-estrutura para
receber desconhecidos e ter a segurança como um trunfo devido à presença deles
– como as ruas dos bairros prósperos- precisa ter três características
principais: Primeira, deve ser nítida a separação entre o espaço publico e o espaço
privado. O espaço público e o privado não podem misturar-se, como normalmente
ocorre em subúrbios ou em conjuntos habitacionais. Segunda, devem existir olhos
para a rua, os olhos daqueles que podemos chamar de proprietários naturais das
ruas. Os edifícios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a
segurança, tanto deles quanto dos moradores, devem estar voltados para a rua.
Eles não podem estar com os fundos ou um lado morto para a rua e deixá-la cega.
E terceira, a calçada deve ter usuários transitando ininterruptamente, tanto
para aumentar na rua o numero de olhos atentos quanto para induzir um numero
suficiente de pessoas de dentro dos edifícios da rua a observar as calçadas.
Ninguém gosta de ficar na soleira de uma casa ou na janela olhando uma rua vazia. Quase ninguém faz isso. Há
muita gente que gosta de entreter-se, de quando em quando, olhando o movimento
da rua. Em assentamentos urbanos de pequeno porte, o controle sobre o
comportamento aceitável em mais público,
quando não sobre a criminalidade, parece funcionar com mais ou menos êxito por
meio de um emaranhado de condutas, comentários, aprovação, desaprovação e
sanções – todos aspectos importantes quando as pessoas se conhecem e as
noticias correm de boca em boca. É inútil tentar esquivar-se da questão da
insegurança urbana tentando tornar mais seguros outros elementos da localidade,
como pátios internos ou áreas de recreação cercadas. As ruas devem não apenas
resguardar a cidade de estranhos que depredam: devem também proteger os
inúmeros desconhecidos pacíficos e bem intencionados que as utilizam,
garantindo também a segurança deles. Além do mais, nenhuma pessoa normal pode
passar a vida numa redoma, e aí se incluem as crianças. Todos precisam usar as
ruas. Todavia, não é tão simples atingir essas metas, especialmente a
última. Não se podem forçar as pessoas a
utilizar as ruas sem motivo. Entretanto, a segurança das ruas é mais eficaz,
mais informal e envolve menos traços de
hostilidade e desconfiança exatamente quando as pessoas as utilizam e usufruem
espontaneamente. O requisito básico da vigilância é um número substancial de
estabelecimentos e outros locais públicos dispostos ao longo das calçadas do
distrito; deve haver entre eles sobretudo estabelecimentos e espaços públicos
que sejam utilizados de noite. Em primeiro lugar, dão ás pessoas – tanto
moradores quanto estranhos – motivos concretos para utilizar as calçadas onde
esses estabelecimentos existem. Em segundo lugar, fazem com que as pessoas
percorram as calçadas, passando por locais que, em si, não têm interesse para
uso público, mas se tornam freqüentados e cheios de gente por serem caminho
para outro lugar. Em terceiro lugar, os próprios lojistas e outros pequenos
comerciantes costumam incentivar a tranqüilidade e a ordem. Se estiverem em bom
número, são ótimos vigilantes das ruas e guardiões das calçadas. Este último
item, de que a presença de pessoas atrai outras pessoas, é uma coisa que os
planejadores e projetistas tem dificuldade em compreender. Eles
partem do principio de que os habitantes das cidades preferem contemplar o
vazio, a ordem e o sossego palpáveis. O equivoco não poderia ser maior. O
prazer das pessoas de ver o movimento e outras pessoas é evidente em todas as
cidades. A mesma coisa acontece nas vias públicas de qualquer lugar. Uma rua
viva sempre tem tanto usuários quanto meros espectadores, além de pessoas que
tomam conta das ruas sem compromisso. Elas notam os desconhecidos.
Elas observam tudo o que acontece. Se precisarem intervir, seja para orientar
um estranho esperando no lugar errado, seja para chamar a policia, elas
intervêm. Sem dúvida, a intervenção sempre
requer certa autoconfiança, por parte de quem age, sobre sua convicção como
co-proprietário da rua e sobre o auxilio que terá em caso de necessidade. No
entanto, ainda mais fundamental do que a intervenção e imprescindível a ela é a
própria vigilância. Nem todo o mundo nas cidades ajuda a tomar conta das ruas,
e muitos moradores ou trabalhadores não têm consciência do motivo pelo qual seu
bairro é seguro. Em alguns bairros ricos, onde existe pouca vigilância do tipo
faça-você-mesmo são contratados vigilantes de rua, que prestam quase o mesmo
serviço na manutenção da civilidade nas ruas. As cidades não apenas têm espaço
para essas diferenças e outras mais em relação a gostos, propósitos e
ocupações; também precisam de pessoas com todas essas diferenças de gostos e
propensões. A boa iluminação é importante, mas não se pode atribuir apenas à
escuridão a enfermidade grave e funcional das áreas apagadas, a Grande Praga da
Monotonia. Para explicar o efeito perturbador dos estranhos nas ruas de áreas
urbanas apagadas, destacarei primeiro as peculiaridades de outra espécie típica
de rua – os corredores dos conjuntos habitacionais em prédios de apartamentos,
aqueles derivados da Ville Radieuse. Em certo sentido, os elevadores e os
corredores desses conjuntos são ruas no chão, e do chão se façam parques
desérticos. Essas áreas internas dos edifícios não só são ruas no sentido de
que servem à circulação dos moradores. São ruas também no sentido de serem
acessíveis ao público. Qualquer um pode entrar nesses edifícios sem se
identificar e usar a rua móvel, que é o elevador, e as calçadas, que são os
corredores. Essas ruas internas, embora inteiramente acessíveis ao uso público,
são fechadas à vista das pessoas, carecendo, portanto, da vigilância e da
inibição exercidas pelos olhos que policiam as ruas. Essas mesmas ruas que
atraem estranhos não estão preparadas para lidar com estranhos, e a presença
deles é uma ameaça automática. Um planejamento que ignore isso e desconsidere
as profundas deficiências funcionais do local só pode provocar uma de duas
conseqüências. Primeira, as pessoas de fora continuarão a freqüentar o local
quando quiserem e, sendo assim, haverá entre elas estranhos que não são nem um
pouco bem-comportados. Quanto à segurança, nada terá mudado, a não ser que
talvez haja mais oportunidades para cometer delitos nas ruas, em virtude da
ampliação dos vazios. Ou, segunda conseqüência, o plano pode conter medidas
rígidas e insólitas para manter as pessoas de fora afastadas do local, como
soltar cães policiais todas as noites para patrulhar e intimidar qualquer ser
humano. O diagnostico e as medidas corretivas do plano são típicas – apenas
ligeiramente mais ambiciosas – de planos concebidos como experimentos de
revitalização de áreas apagadas em cidades de todo o país. Suponhamos que
continuemos a construir cidades inseguras e a reurbanizá-las deliberadamente.
Como conviveremos com essa insegurança? Pelas evidencias que temos até hoje,
parece haver três maneiras de conviver com ela. A primeira maneira é deixar o
perigo reinar absoluto e deixar que os infelizes que defrontarem com ele sofram
as conseqüências. Essa é a política adotada atualmente com relação aos
conjuntos habitacionais de baixa renda e vários outros, de renda média. A
segunda maneira é refugiar-se em veículos. Esse recurso é utilizado nas grandes
reservas de animais selvagens da África, nas quais os turistas são advertidos a
não sair do carro em hipótese alguma até que cheguem ao alojamento. Essa
prática também é empregada em Los Angeles. A
terceira maneira foi criada por bandos de arruaceiros e abertamente adotada
pelos criadores da cidade reurbanizada. Essa modalidade consiste em cultivar a
instituição do Território. Segundo a modalidade tradicional do sistema do
Território, uma gangue apropria-se de certas ruas e conjuntos habitacionais ou
parques – geralmente uma combinação dos três. Os integrantes de outras gangues
não podem entrar nesse Território sem a permissão de seus proprietários e se o fizerem
correm o risco de ser espancados ou enxotados, embora ocorram tréguas entre os
grupos rivais. Para a polícia, que procura garantir o direito de qualquer
pessoa de transitar em segurança em qualquer local da cidade, tendo por direito
fundamental a imunidade, os pactos sobre os territórios subvertem
intoleravelmente os direitos do cidadão e a segurança pública. Nos projetos de
reurbanização das cidades também é prática a demarcação de territórios: as
cercas se tornam concretas. Na cidade reurbanizada é necessário haver uma serie
de cercas para instalar uma vizinhança equilibrada. A “junção” de duas
populações com etiquetas de preço diferentes é particularmente notável e o
preconceito e a discriminação são visíveis. A prática de dividir a cidade em
Territórios não é uma solução nova-iorquina apenas. É uma solução da cidade
norte-americana reurbanizada. Onde quer que surja uma cidade reurbanizada, o
conceito do Território vem junto, porque a cidade reurbanizada despreza a
função fundamental da rua e, com ela, necessariamente, a liberdade da cidade.
Sob a aparente desordem da cidade tradicional, existe, nos lugares em que ela
funciona a contento, uma ordem surpreendente que garante a manutenção da
segurança e a liberdade. É uma ordem complexa. Sua essência é a complexidade do
uso das calçadas, que traz consigo uma sucessão permanente de olhos. Essa ordem
compõe-se de movimento e mudança, e embora, se trate de vida, não de arte,
podemos chamá-la, na fantasia, de forma artística da cidade e compará-la a
dança. Um balé complexo, em que cada individuo e os grupos têm todos papeis
distintos, que por milagre, se reforçam mutuamente e compõem um todo ordenado.
O balé da boa calçada urbana nunca se repete em outro lugar, e em qualquer
lugar está sempre repleto de novas improvisações. A descrição dos balés diários
são mais frenéticas do que são, porque as cenas são mais compactadas. Na vida
real não é assim. Na vida real, com certeza, há sempre alguma coisa
acontecendo, o balé não tem intervalo, mas a sensação geral é serena, e a
cadencia geral, bem mais pausada. Não existe porém simplicidade alguma na ordem
em si ou no atordoante número de elementos que a compõem. A maior parte desses
componentes são, de certa maneira, específicos. Eles provocam um efeito
conjugado sobre a calçada, contudo, que não é de modo algum especifico. Aí
reside sua força.
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