Fonte: Google Imagens |
No filme Mon Oncle, Tati contrapõe
a forma de viver de Monsieur Hulot e dos Arpel. Essa comparação entre os
estilos de vida se dá através de ações e dos elementos físicos que os rodeiam,
que são introdutores dos comportamentos, sua causa e conseqüência. É uma lição
crítica de arquitetura, na qual se enfrentam dois modos de pensá-la e que são
também modos de vivê-la (duas correntes de pensamento) que leva a crise dos
dogmas modernos, no X CIAM, através de jovens arquitetos reunidos no Team X. O
alvo era o reducionismo positivista que dominava a arquitetura moderna da
época.
No pensamento positivista, a filosofia seria auxiliar ao trabalho
cientifico, e teria existência apenas enquanto justificasse e interpretasse a
ciência, tida como a mais evoluída forma do conhecimento humano. Seu objetivo
era conduzir o homem a uma sociedade perfeita, um império de ordem e progresso
onde o individuo é tido como um dado estatístico. Tati faz uma caricatura dessa
inserção maquínica como parte da engrenagem da sociedade em que os Arpel
representam uma família modelo de comportamentos objetivos como no
Existezminimun.
Os Arpel estão imersos no tempo teleológico do positivismo, que
se projeta para o futuro, desligando-se do passado, como ocorre na Paris do
Plan Voisin, onde Madame Arpel exibe sua casa, onde tudo é funcional, “tudo se
comunica”, ante sua obsessiva mania de limpeza. De encontro a essa sociedade
unidirecional vem Monsieur Hulot, vivendo em um labirinto fenomenológico e
indiferente a toda idéia de progresso urbanista. Para os arquitetos da época o
que valia era o “metro-quadrado” e como se daria sua otimização com as técnicas
do Taylorismo. A casa experimenta então, uma fragmentação em unidades mínimas
que darão origem, posteriormente, às construções em série. Esse espaço,
produto da geometria, encena a exposição de uma família igualitária,
trabalhadora, eficiente e saudável uns frente aos outros e para o exterior.
Tanta higiene, proporcionada pela limpeza e pela transparência exibe um espaço
sem densidade e memória, mas bastante moralista e repressivo como no Panóptico
de Jeremias Bentham. É um espaço marcado pela vigilância, a exposição do
privado, o domínio do entorno pelas janelas do quarto do casal: uma máquina de
vigiar a unidade e a ordem. Utiliza-se uma versão doméstica do Panóptico onde
casa e jardim são separados apenas por um pano de vidro e onde as concepções
médicas encontrarão terreno fértil para promover a saúde através do eixo
heliotérmico da casa que se estende ao bairro, como a Ville Radieuse. A
natureza é reduzida à “superfície verde”: res extensa + eixo heliotérmico. Tati
opõe o jardim dos Arpel com seu peixe-fonte e sua codificação de usos e
movimentos com os arrebaldes por onde Monsieur Hulot circula e suas formas mais
intensas de socialização.
Há também uma discussão acerca dos materiais e
técnicas industriais da época. Cada material industrializado colaboraria com
suas propriedades físicas derivadas de leis e normas, o branco caracterizaria o
espaço cartesiano e higiênico, moderno, visível e integrador. Surge o vidro,
perfeito em suas propriedades, coincidindo com a ascensão dos valores
ideológicos. A casa positivista é a única que encontra seu apogeu no conjunto
habitacional, pois se integra a uma engrenagem coletiva superior para conformar
e modelar a cidade. O conjunto habitacional sintetiza a metáfora orgânica da
célula e o organismo para produzir uma série de objetos-tipo para
famílias-tipo.
As seqüências de Mon Oncle representam também as unidades
mínimas de Taylor e da vida dos Arpel, materialização direta da Carta de
Atenas, em que habitação, lazer, trabalho e circulação são separados no tempo e
no espaço para otimizar a produção da sociedade industrial. Com estas unidades mínimas
Le Corbusier organiza sua Ville Radieuse, reino da unidade e da ordem exposta
ao eixo heliotérmico, que demonstra, no esplendor da sua perfeição, a
necessidade do urbanismo. Assim, a cidade utópica dos Arpel se materializou em Brasília. Vemos
reproduzidos na escala da cidade os mecanismos de projeto da casa, feita para
ser uma “máquina de morar”, insensível e desvinculada do passado. Nessa época,
o arquiteto projetava ligado mais a estética do que a prática, pois expressava
a maquinização. O que deixou de estar presente foi a individualização do
espaço, pois tudo já fora previsto por outro, o arquiteto moderno. A Villa
Arpel expressa bem essas falhas sistemáticas nos seus automatismos, sua
ineficiência técnica e suas conseqüências escravizadoras. Falta apropriação do
espaço, conforto... Não há estímulos sensoriais que tornam a casa agradável,
pelo contrário: a sonoridade metálica e irritante reproduz a da fabrica. Não há
prazer, descanso, intimidade. Seu maior relaxamento, a televisão, aponta para a
limitação nas formas de pensar e habitar a casa positivista. Ainda hoje a
arquitetura encontra dificuldades para superar essa ideologia, profundamente
arraigada nas normas que deixou como herança.
Nossa visita a casa dos Arpel faz-se
enviesada e parcial, e seria bem distinta se considerássemos a situação
histórica, a explosão demográfica associada à industrialização, o caráter
progressista de tantas experiências, o beneficio à qualidade de vida daquelas
mesmas regulações e leis, o sentido de resistência da modernidade frente às
tendências mais brutalistas do capitalismo selvagem... Enfim, sabemos que
estamos condenados a esta fascinação exercida pelo mundo de onde viemos, que
nos fez como somos, que nos forneceu as normas com e contra as quais viver,
isto a que sempre se denominou “tradição”.
Fonte: A BOA-VIDA - VISITA GUIADA ÀS CASAS DA MODERNIDADE, de
IÑAKI ABALOS.
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